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Astronauta

O dia que me mudei para Marte não foi estranho. Parecia que havia vivido naquele lugar fazia anos. Lembro-me da sensação que veio-rápida, intransigente e seca-, de um torpor que podia ser sentido na ponta dos meus dedos. Toquei na superfície do planeta e percebi, anonimamente, que já não era mais ninguém. Foi uma energia, ao invés de um planeta que sugeriu-me que havia tudo acabado. Não agora. Nem neste exato instante. Em um longo tempo atrás, antes mesmo dos dinossauros, algo veio e demoliu cada partícula, uma explosão que já continha passado, presente e futuro, o dia em que eu fui para Marte, foi o dia mais feliz da minha vida. Relato de autor desconhecido              O termo memória nasce, pronto, como um fracasso, ela faz parte da noção que algum dia já fomos capazes de imobilizar um momento. Marco Aurélio disse que atentar contra o passado era uma piada, não havia ninguém para escutar sua brincadeira. O homem pensava nisso, enquanto esticava seus dedos em direção ao c

Na trama do casamento

Ela sabia que aquele dia decidiria o resto da sua vida, mas, mesmo assim, desejou que nenhum pensamento assolasse sua mente durante sua caminhada. Pessoas estavam se aglomerando aos lados, e belas flores, rosas, espalhavam-se pelas bancadas. Não sabia como diabos tantas pessoas haviam surgido naquela festa, deveria ter sido ideia do seu noivo, possível marido, querendo animá-la. Ela estava nervosa, não entendia a utilidade daquele festival de símbolos. Ela repetiu, pelo menos umas dez vezes, que a forma com que a noiva se vestia de branco era uma velha tradição machista que buscava pureza, virgindade e gentileza. Ela, no entanto, vestia azul, como para que afirmar que, de jeito nenhum, havia cedido toda sua personalidade para aquele ritual. Seus olhos, porém, entregavam sua preocupação.             Voltando um pouco atrás, ela tinha dezoito anos, quando tudo começou. Eles se conheceram no meio da uma escadaria, e seria impossível determinar qual foi a característica definitiva

A triste e curta vida de Ernesto

Ernesto levanta cedo, e percebe, curiosamente, os pássaros voando ao seu redor. Começa a se sentir tonto, faz anos que ele percebe que viver de cigarro, café e cerveja não vão mantê-lo vivo por muito tempo, mas ele tem feito a pergunta, importante, se ele, realmente, quer se manter vivo. Duas possíveis respostas: 1)       Sim 2)       Não Ele não consegue pensar no não. Ele era católico, afinal de contas. Ainda rezava para um Deus que não acreditava. Por isso a pergunta tinha que ser sim, mas não gostava daquela afirmativa-seca, redonda e certa- de um sim, sem nenhuma reflexão. Levantou-se, em plena segunda, com um calor assolando seu corpo. Foi-se espalhando pelas suas extremidades, a roupa social colada no corpo, enquanto sentava numa praça. Percebia que era um ataque de pânico. Queria gritar, mas sua garganta estava seca, poderia ter pedido ajuda, mas não conseguia se expressar, ou mesmo, não queria se expressar. Ernesto tinha decidido há muito tempo atrás que era d

Devolvida ao remetente

Devo começar esta nota por um lembrete, ou melhor, uma tentativa de recapitular certas coisas que foram ditas. Toda pessoa no momento em que emite uma palavra, arrepende-se, automaticamente, do seu erro, pois é impossível roubá-la de volta. A escrita, infelizmente, faz isso duas vezes, e perpetua, por meio do tempo, este pobre erro. Não é sem acerto que Platão quis expulsar todos os malditos poetas da sua cidade perfeita, afinal, eles acabariam dando muito trabalho ao rei filósofo que já não queria explicar muito bem suas razões. Ás vezes, a literatura é uma forma de explicar suas razões. Não sempre.              Deveria começar com um pedido de desculpas. Sempre odiei voltar atrás. Qualquer passado para aquele que deseja o progresso deve ser eliminado, trucidado e esquadrinhado numa pequena cela, onde o sol não bate, e a comida é rara. Lembro-me do seu rosto, quando disse que estávamos terminados. Em minha defesa, mal entendia o conceito de tempo e o que ele era capaz de fazer co

Espelho

O corpo fechou, lentamente, sobre si mesmo.   Primeiro, não conseguia mais comer, ou dormir. Tudo que ele colocava à boca, voltava em forma de vômito. Era simples, tecnicamente, o que estava acontecendo, seu corpo, assim como sua mente, havia sido destruído. O quarto parecia ter congelado no tempo, nada era limpo, e os gatos pareciam miar, constantemente, contra sua paz. Não havia deixado entrar luz na sua casa fazia semanas. O ar era denso e parecia carregar uma história sobre seu passado, o cheiro não parecia ligado à vida, mas sim a um reino, totalmente, desconhecido.              Havia pensado que todos seus heróis tinham se suicidado, no entanto, ele não gostava da pressa desta decisão. Ele preferia algo devagar, que não dependesse da sua decisão consciente. O psiquiatra havia dito que nunca tinha visto aquilo acontecer, ele tinha perdido muito peso, tinha um quadro clinico desesperador, mas sem nenhuma doença aparente. Ele respirava, fundo, enquanto meditava sobre seu destin

Autor

Há muito tempo, um homem sobreviveu a guerra, ou, poderíamos dizer que a guerra sobreviveu nele. As primeiras páginas que vieram à sua mente foram as bombas explodindo, a França pegando fogo. O sonho de todo soldado em acertar Hitler na cabeça. Thomas passou anos escrevendo o mesmo livro, acreditava, piamente, que a repetição pudesse salvar sua sanidade. Lia o rótulo dos produtos no seu banheiro, escrevia no romance. Quando a fama veio, ele não conseguiu entender, como possivelmente o mundo inteiro havia podido amar suas bizarrices. Lógico, ele, rapidamente, aprendeu que o mundo havia tirado dele o que queria, sem nem se importar com o que ele quis. Quando ele escrevia, repetia a si mesmo uma pequena prece sobre quem ela era, havia um pedido desculpas pela confusão, ele desejava abrir uma porta que há muito tempo havia fechado.              David respirava fundo, mas sabia que não havia chance contra a depressão. O grande buraco com dentes havia tomado conta do seu corpo: devagar,

Separações.

             Conseguia escutar o som, ou melhor, a falta dele. Era como se a solidão invadisse cada metro quadrado, livros jogados ao acaso, fora da ordem, gritos surdos, vidas perdidas. O silêncio é uma forma que encontramos de fugir de quem nós somos. O barulho, a confusão e a baderna definem nossos sistemas sociais. Vivemos num mundo em quem fala mais alto, é escutado. Existe uma revolução no meu tipo de silêncio, ele é uma prece contra o barulho. Todo grito é uma forma de não querer morrer. Eu estava sentado, vendo uma flor morrer, aos poucos, quando ele me perguntou o que havia acontecido.              Sempre comece um novo parágrafo, explicando algo novo, disse meu professor de escrita. Entretenha o leitor com algo fácil, talvez um fato chocante. Ela estava sorrindo, ou, era assim que ele gostaria de imaginar. Se sua fuga havia sido inteligente, eu nunca haveria de saber. Ela colocou algumas roupas na mala, retirou a maquiagem da bancada e desfez os votos que fizemos sem s